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Para além da forma e da estética, a produção artesanal revela as referências cosmológicas, lúdicas e culturais de seus autores, que conferem uma beleza única às peças. Vamos aguçar o olhar?
A realização de muitas atividades cotidianas dos povos amazônicos depende do uso de objetos trançados. As esteiras oferecem lugar de descanso. Frutos, lenha e outros materiais são transportados pelas florestas por longas distâncias em grandes cestos cargueiros. Os tipitis e peneiras são essenciais para o processamento da mandioca e os abanos servem para avivar o fogo e virar os beijus. Já os cestos armazenam alimentos, além de guardar e organizar diversos objetos.
As técnicas utilizadas para produzi-los variam, assim como as fibras. Todas de origem vegetal, elas são obtidas de diversas espécies de palmeiras, cipós e outras plantas. A exceção é o përisi dos cestos Yanomami, provavelmente o único fungo do mundo utilizado para trançar. Além dos usos práticos, os trançados apresentados aqui também podem possuir significados simbólicos, percebidos pela presença de grafismos criados a partir do entrelaçamento de fibras coloridas.
Algumas peças foram criadas por meio da união fecunda dos conhecimentos tradicionais com os princípios do design. Com novos formatos e funções, esses produtos possuem alto valor agregado e sua comercialização é uma importante fonte de renda para diferentes comunidades.
A transformação de sementes em contas é um trabalho delicado e bastante demorado. Depois de coletadas, recebem diferentes tratamentos: elas podem ser cozidas, assadas ou tingidas, cortadas e perfuradas uma a uma, lixadas e polidas para o acabamento. O mesmo acontece com as conchas, obtidas de caramujos terrestres e de outros moluscos aquáticos. Prontas, as contas são combinadas para a criação de adornos que embelezam corpos e objetos. Observe as peças expostas e repare como as contas são enfileiradas, trançadas, tecidas ou penduradas, com diferentes fibras vegetais. Para a maior parte dos povos indígenas da Amazônia, confeccionar as contas e os adornos são tarefas exclusivamente femininas, pois as mulheres são responsáveis por adornar os corpos das crianças e de seus familiares.
Com características acústicas, as matérias-primas vegetais também são utilizadas na confecção de instrumentos musicais. O atrito entre as sementes de aguaí ou de pequi produz o som dos chocalhos, que também são feitos com cabaças recheadas de sementes. Já a taquara é usada para fazer buzinas e flautas. Esses instrumentos marcam o ritmo das celebrações e rituais com sons profundamente conectados com a floresta e seus espíritos.
Achados arqueológicos indicam o uso de bancos por povos da Amazônia há mais de quatro mil anos. Geralmente esculpidos em uma única peça de madeira, eles são baixos e de uso individual. Os bancos são sempre produzidos por homens, pois o entalhe é entendido como uma atividade masculina. Os ornamentos, por outro lado, podem ser realizados por mulheres, como é o caso dos bancos Karajá. Nesse conjunto, você pode observar como os formatos e ornamentações variam de acordo com a cultura de cada povo. Dois têm a forma de animais, como o urubu-rei que pode voar longe e, por isso, têm forte relação com o sobrenatural. Vários possuem os mesmos grafismos tradicionalmente pintados nos corpos, como o banco Asurini. As pinturas são feitas com diferentes tintas naturais, como o jenipapo, o urucum e o carajuru, que tinge de vermelho o assento do banco Tukano. Da mesma forma, os usos também variam de acordo com as práticas culturais de cada grupo. Eles podem ser utilizados para atividades cotidianas ou em celebrações, diferenciando os indivíduos da comunidade por critério de gênero ou idade. Os bancos são especialmente utilizados pelos pajés em rituais e para se comunicar com os espíritos da floresta. Sentado no banco, o pajé assume uma postura corporal que conecta dois mundos: os joelhos apontam para o céu, enquanto os pés se fixam na terra.
Por suas características físicas e químicas, as cerâmicas resistem mais facilmente à passagem do tempo na floresta quente e úmida, diferentemente de materiais orgânicos como fibras naturais. Por isso, peças e fragmentos cerâmicos encontrados em escavações arqueológicas são essenciais para entender a história da Amazônia, que já era amplamente habitada por sociedades complexas há pelo menos 10 mil anos. Atualmente, a cerâmica continua a ser praticada e mantida por diferentes populações que habitam a região e seus usos variam. Elas podem ser utilizadas para preparar e servir alimentos, em rituais ou função decorativa.
As peças aqui expostas têm três origens diferentes. Um conjunto maior, formado por cerâmicas indígenas, cuja produção é entendida como uma atividade exclusivamente feminina. Um conjunto menor que compreende as cerâmicas quilombolas, que carregam o saber ancestral de povos africanos que foram levados para a região como mão-de-obra escrava no período colonial. O terceiro conjunto apresenta duas réplicas de peças arqueológicas, produzidas a partir do trabalho de pesquisa em museus e livros especializados iniciado na década de 1970 pelo Mestre Cardoso, falecido em 2006, e atualmente pelo pesquisador e também mestre ceramista Jefferson Paiva.
Você percebeu que as cerâmicas possuem elementos decorativos? Alguns deles têm apenas a função de embelezar, mas outros possuem uma forte relação com as histórias de cada povo, como é o caso das serpentes que aparecem nas cerâmicas Waujá e Juruna. As decorações podem ter também uma função prática. Para as mulheres Marubo, o interior preto da panela evita que as bananas se queimem quando estão cozinhando.
Esse conjunto de cuias foi confeccionado com o fruto da árvore cuieira (Crescentia cujete) pelas artesãs da Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém, localizada na cidade de Santarém, no Pará. As cuias são utilizadas por povos ribeirinhos e indígenas amazônicos em diferentes tarefas, como consumir alimentos e bebidas, tomar banho e retirar a água dos barcos. Atividade exclusivamente feminina, a confecção das cuias leva em média oito dias e possui muitas etapas. O fruto é colhido, cortado em duas metades, limpo e polido. Em seguida, é tingido com o cumatê, tintura natural obtida da casca da árvore cumatezeiro. Após a fixação da cor, preta e brilhante,
a cuia pode ser decorada por meio de incisões, utilizando uma faca. As decorações têm diferentes temáticas e são chamadas pelas artesãs de “bordados”. Bastante tradicionais, os desenhos florais remetem às louças, influência da colonização portuguesa. Já os motivos geométricos, que você pode ver aqui, são inspirados nos grafismos das cerâmicas arqueológicas do antigo povo Tapajó, que viveu na região de Santarém até o século XVIII. Devido à sua grande importância cultural e simbólica, o modo de fazer cuias do Baixo Amazonas foi registrado como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, inscrito no Livro de Registro dos Saberes em 2015.
Na região amazônica, as cuias são especialmente utilizadas para servir pratos com caldos como o tacacá, que é feito com o tucupi (um caldo preparado com a mandioca brava), folhas de jambu e camarão seco. Diferentemente do prato que fica sobre a mesa, a cuia permite trazer a comida mais perto da boca e, até mesmo, beber diretamente dela. Você já experimentou algum prato típico da Amazônia servido nas cuias? Como foi essa experiência?
Na floresta amazônica existem diversas espécies de árvores produtoras de látex, matéria-prima para a confecção da borracha. Cada tipo de látex possui características próprias e os povos indígenas que habitam essa região sabem, há séculos, como extraí-los e trabalhá-los para produzir diversos tipos de objetos. O látex mais conhecido é o da seringueira (Hevea brasiliensis), que possui diversas aplicações industriais e artesanais. A união dos conhecimentos tradicionais com as pesquisas realizadas em universidades levou à criação dos encauchados, técnica utilizada por unidades familiares para criar peças emborrachadas no meio da floresta. Outro tipo de látex menos conhecido é a balata, obtido da árvore balateira (Manilkara bidentata). Encontrada somente nas florestas à margem esquerda do rio Amazonas, em uma região repleta de cachoeiras, sua extração é realizada em excursões perigosas que chegam a durar seis meses. A balata já foi o principal item de exportação do estado do Pará entre as décadas de 1930 e 1970, destinada à indústria. Hoje, praticamente toda a balata extraída é utilizada na produção de objetos figurativos por habilidosos artesãos retratando cenas de seus cotidianos, a flora e a fauna da floresta. Desde seu processo de extração até a modelagem, os modos de fazer relacionados à balateira foram reconhecidos como Patrimônio Cultural do Estado do Pará pela Lei n° 8.073/2014
(bonecas karajá)
O povo indígena Karajá vive nas margens do rio Araguaia, nos estados de Tocantins, Mato Grosso e Goiás. Ritxòkò é a palavra utilizada pelas mulheres Karajá para se referir às bonecas de barro, bem como aos conhecimentos e saberes necessários para confeccioná-las. A produção das figuras é uma atividade exclusivamente feminina, passada de geração em geração. Elas representam motivos mitológicos, da vida cotidiana, de rituais e da fauna e portam as pinturas corporais e os adornos tradicionais do povo Karajá. São dadas de presente às meninas de acordo com a sua faixa etária e, por isso, têm um papel fundamental na socialização da mulher Karajá. Originalmente, eram confeccionadas em cera de abelha e em barro cru. A partir da década de 1940 passaram a ser queimadas, portanto, feitas de cerâmica. O modo de fazer as Ritxòkò foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial brasileiro por meio do registro das Formas de Expressão e do livro dos Saberes, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A miçanga ocupou e ainda ocupa um importante papel nas relações entre as sociedades indígenas e não indígenas. No período colonial, as contas de vidro foram utilizadas como uma moeda de troca pelos europeus, interessados nas riquezas naturais deste território que viria a ser o Brasil. Enquanto os europeus julgavam trocar quinquilharias por valiosas matérias-primas, os indígenas, consideravam as miçangas valiosas e exóticas. Esse fascínio pode ser explicado pelo valor que as culturas indígenas atribuem às miçangas enquanto material para a confecção de adornos corporais, objetos essenciais para a formação da identidade individual e coletiva e para a realização de rituais. Nessas sociedades, os adornos corporais diferenciam as pessoas, marcam os gêneros masculino e feminino e as fases da vida, tornando-se parte do corpo de quem os porta. Esse conjunto de adornos, formado por brinco, colares e braceletes foram confeccionados com miçangas por artesãs do povo kayapó e são utilizados como símbolos de beleza, prestígio e felicidade.
O que leva você a usar determinado acessório? A beleza, o estilo, um significado especial? Atualmente, muitos não indígenas usam colares e pulseiras confeccionados por artesãos de diferentes povos indígenas. Diversos motivos podem justificar essa escolha, como a beleza das peças, sua importância cultural, seu significado simbólico e, até mesmo, a busca por proteção espiritual, pois esses objetos são considerados amuletos.